A mentira
Na sala de aula, todos os meninos se ajeitavam nas cadeiras
e pegavam no lápis. A borracha, essa, fi cava ali bem perto, pois certamente
seria muito útil. A professora iria distribuir-lhes uma ficha de avaliação de
língua portuguesa. Maria apertava o lápis com a mão transpirada, olhava em
redor e sentia uma ansiedade crescente à medida que a professora se aproximava
da sua mesa, distribuindo as folhas de papel para serem preenchidas. Na sua
cabecita, voavam pensamentos desordenados. Devia ter estudado… E agora? Não me
lembro de nada. Vou ter má nota e todos se vão zangar comigo… As lágrimas
espreitavam pelos olhos de Maria, como se se debruçassem de uma janela,
curiosas por conhecerem a paisagem que dali se via.
– Boa sorte, meninos – desejou a professora, sempre sorridente e esperançosa no
desempenho dos seus alunos - Têm 45 minutos para fazerem esta ficha. Todos os
livros e cadernos dentro das mochilas. Em cima da mesa apenas a folha, o lápis
e a borracha.
Graus dos adjetivos. Ai… Comparativo, superlativo! Antónimos e sinónimos.
Formas verbais… pensava a menina, enquanto olhava a folha, em pânico. O
nervosismo não lhe permitia sequer pensar e fazer o teste. Ocorreram-lhe
algumas possíveis soluções para sair daquele problema: 1) falar com a
professora e explicar-lhe que não tinha estudado, suplicando que a deixasse
fazer a prova noutro dia; 2) fingir que se estava a sentir mal, para que a
deixassem ir para casa e fazer o teste noutro dia; 3) copiar do teste do
Afonso, que se sentava ali ao lado e que era o melhor aluno da turma. Esta
terceira hipótese pareceu-lhe a melhor, pois não gostaria de confessar não ter
estudado e também sabia não ter lá muito jeito para teatro. Para além disso, o
Afonso era amigo de todos e quase sempre deixava que copiassem dele os
trabalhos-de-casa. Certamente não iria agora negar-lhe essa ajuda.
Foi então que Maria começou a chegar a sua cadeira um bocadinho mais para o
lado. Sempre que a professora ficava de costas para ela, chegava-se um
bocadinho mais. E mais um pouco… Depois, esticava a cabeça como uma tartaruga
que espreita pela carapaça. De olhos esbugalhados, tentava decifrar a letra
pequenina de Afonso que, percebendo que a colega precisava de copiar, também
chegara a cadeira para perto dela. Esticou-se e conseguiu ler que o antónimo de
‘comprar’ era ‘vender’ e que o antónimo de ‘verdade’ era ‘mentira’. Quando
tentava ler o grau do adjetivo ‘lindíssima’, sentiu que alguém lhe tocava no
ombro. Virando-se viu a professora ao seu lado. Maria estremeceu e, ao olhar os
olhos da professora, conseguiu ler todas as palavras que formavam o seu
pensamento. E nem foi preciso esticar-se como uma tartaruga. Leu
desapontamento, desilusão, deceção. Teria sido menos doloroso se tivesse lido zanga
ou irritação.
– Maria, entrega-me a tua ficha. No intervalo ficas aqui na sala para
conversarmos – afirmou a professora, com voz firme, mas triste.
Com maior ou menor sucesso, as restantes crianças terminaram as suas provas e
foram para o intervalo. De lá de fora chegavam gargalhadas, risos, raios de
sol, vozes infantis cantando. Dentro da sala ouvia-se o pesado som do silêncio
que antecede as palavras que não se querem escutar.
– Não compreendo, Maria. És uma boa aluna, responsável. O que se
passou? – Perguntou a professora, serenamente.
– Não estudei. Fiquei no computador e quando olhei o relógio já era tarde e
estava cansada… – respondeu Maria, cabisbaixa.
– E achaste que resolvias o problema copiando por um colega? Não te parece que
o mais correto seria enfrentares as consequências de não teres estudado?
Certamente na próxima vez irias preocupar-te em estudar em vez de ficares no
computador, não é, Maria? Copiar e enganar nunca são soluções válidas. É
preferível uma má nota.
– Não voltará a repetir-se, professora. Desculpe – afirmou a menina,
honestamente.
Ao chegar a casa, Maria tentou esconder a tristeza. Forçou um sorriso, aclarou
a voz e dirigiu-se à mãe para lhe dar um beijo.
– Olá filha. Como correu a ficha de português? – perguntou a mãe, esperando a
habitual resposta que, de facto, surgiu.
– Muito bem, como sempre! De certeza que vou ter boa nota! Vou brincar para o
meu quarto! - exclamou Maria que, ao afastar-se da mãe, deixou que
novamente a tristeza viesse pintar o seu rosto. Na realidade, o desalento e a
vergonha ocupavam todo o seu corpo: os olhos apagados, a boca contraída, os
braços esmorecidos, os ombros arqueados, o coração destroçado.
Trrimmm. Trrimmm. A mãe atendeu o telefone e ouviu a professora da
Maria contar-lhe o sucedido naquele dia. Terminada a conversa, a mãe respirou
fundo e dirigiu-se ao quarto da filha. Sentou-se junto dela, segurou-lhe a mão
e disse-lhe calmamente:
– Filha, já sei o que se passou hoje na escola. Compreendo que te tenhas
sentido insegura perante uma ficha para a qual não te tinhas preparado. Erraste
porém ao tentares copiar do colega. Mas acima de tudo, não agiste corretamente
ao dizeres-me que tinha corrido bem. Mentir não apaga os problemas. Torna-os
maiores, como bolas de neve que crescem à medida que rebolam colina abaixo.
Maria olhava o chão, envergonhada demais para enfrentar os olhos da mãe que,
embora doces, a lembravam da mentira que dissera.
– Se tivesse má nota ficavas triste comigo… – justificou-se Maria, sentindo as
lágrimas salgadas tocarem os seus lábios.
– Meu amor, é normal umas vezes haver boas notas e outras vezes não. Nunca
ficaria desiludida contigo por isso. Só quero que percebas que quando mentimos
enganamos os outros que afinal estão ali para nos ajudarem, como é o caso da tua
professora e de mim. E por me teres dito que o teste tinha corrido bem, ele não
se transformou num teste cheio de respostas certas, pois não? – explicou a mãe,
colocando o braço por cima dos ombros da menina.
– Desculpa, sei que fiz mal – disse Maria, genuinamente, sentindo que mentir
pode resolver os problemas naquele instante, mas agiganta-os em todos os outros
que se seguem.
– Que bom que reconheceste o teu erro. A professora vai amanhã entregar-me a
tua ficha e, juntas, vamos fazê-la, revendo toda a matéria, sim?
Maria abraçou a mãe, sentindo que o sucedido as tinha aproximado
ainda mais. E não esqueceria jamais que o antónimo de ‘mentira’ é ‘verdade’. A
verdade que nos deixa livres da culpa que pesa e magoa.
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