HÁ MUITO tempo
que a minha mala não guarda cartas. Postais ilustrados, muitos – desde que
aderi a uma coisa salvadora, chamada “postcrossing”, que me traz notícias de
gente do mundo inteiro! (Quem estiver interessado, é só ver na net do que se
trata)
Mas cartas?
Desapareceram.
Ninguém tem tempo
para as escrever.
Ninguém sabe já
como elas se escrevem.
E — pior ainda —
ninguém sabe para o que servem.
Mas eu ainda sou do
tempo em que as cartas eram o modo como as pessoas comunicavam quando o que se
queria dizer não cabia nos períodos (caros…) do telefone.
Jornalista de
profissão há muitos anos, também ainda sou do tempo em que as pessoas escreviam
muito para os jornais.
A protestar – muito.
A aplaudir – pouco.
A agradecer – quase
nunca.
A pedir – quase sempre.
(E também havia um
maluquinho que todos os dias ia ao “Diário de Notícias” para me dar flores
murchas, retiradas de algum caixote do lixo, mas entregues sempre com um grande
sorriso.)
E nós tínhamos
tempo para isso. Para ler as cartas que nos mandavam (e para receber os
maluquinhos que nos batiam à porta…)
Uma vez, em finais
dos anos 60, poisava eu então num jornal, que já não existe, chamado “Diário
Popular”, quando um velho leitor me telefona, dando conta de que uma (em
tempos) grande actriz de teatro estava na miséria, sozinha numa cama de
hospital.
Chamava-se Lina
Demoel – e, embora eu já não a tivesse visto representar, conhecia o nome,
sabia de toda uma vida de glória nos palcos, e daquelas extravagâncias que as
estrelas faziam, o monograma gravado a ouro na porta do carro que guiava,
fotografias ao lado de grandes nomes do music-hall francês, etc …
Escrevi então meia
dúzia de linhas no jornal e – confesso -- nunca mais me lembrei do assunto.
E se hoje aqui o
recordo é porque, de repente, me cai no colo – no meio destas arrumações de
papelada que nos deixam a casa cheia de pó e a pele das mãos encarquilhada –
uma carta enviada em meu nome para o “Diário Popular”, datada de 6 de Dezembro
de 1969.
Escrita naquele
papel com linhas que dantes se comprava nas papelarias propositadamente para
cartas, numa letra trémula de pessoa de muita idade.
Assinava-a Lina
Demoel.
Pedia desculpa por
não poder ir pessoalmente agradecer-me a notícia e por isso me mandava aquela
carta, onde me dizia : “ o seu apelo foi ouvido por tantos, tantos amigos,
admiradores anónimos, colegas, tenho 169 cartas de todo o Portugal, América e
Brasil, e estou-lhe imensamente grata por me ter proporcionado verter lágrimas
de alegria no meio de toda a minha solidão e da dor da doença”.
Sorri, com a
leitura daquela carta com mais de 40 anos (e de que, evidentemente, já nem me
lembrava), achei graça àquele pormenor rigoroso das “169 cartas”, nem mais uma
nem menos uma, e pensei que, se fosse agora, o mais certo era haver um chefe
para me dizer “o jornal está cheio, não há cá tempo nem espaço para essas
palermices, os leitores querem lá saber dessas coisas, ainda se fosse alguém da
“Casa dos Segredos”…
Guardei a carta,
pensei em como hoje em dia as relações entre as pessoas estão tão diferentes e,
vá-se lá saber por que estranhas coincidências, um dos telejornais dessa noite
deu uma notícia absurdamente chocante: desde o princípio do ano ( e este
telejornal era de fins de Janeiro), dez pessoas tinham sido encontradas mortas
em suas casas.
Em pouco mais de 20
dias, dez pessoas tinham morrido absolutamente sozinhas e sem ninguém dar por
isso.
Dez pessoas que,
pelos vistos, não faziam falta a ninguém.
Alguns vizinhos
diziam que sim, que realmente há muito tempo não sabiam delas, outros nem isso
– até que finalmente alguém se lembrou de avisar a polícia.
Que mundo é este em
que nós vivemos, onde temos sempre tempo para as máquinas, e nunca para as
pessoas que vivem ao nosso lado?
Como se as pessoas
fossem objectos descartáveis, que se abandonam quando já não nos servem.
Há quanto tempo não
visitamos velhos tios ou primos ou amigos?
Há quanto tempo não
lhes telefonamos?
Com tanta campanha
que se faz (e muito bem!) pedindo “ não abandonem os animais!”, penso que
talvez não fosse má ideia fazer também algumas pedindo “não abandonem os
velhos!”
Às vezes um simples
telefonema, uma visita rápida, um toque de vizinho na porta (ou meia dúzia de
linhas num jornal… ) podem fazer toda a diferença.
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